quarta-feira, 3 de junho de 2020

Boicote pessoal

Sinopse: em tempos de angústia provocada pelo distanciamento social, faz-se necessária uma auto análise a fim de perceber questões profundas que nossa cultura nos inculcou de forma imperceptível. Esse texto é resultado de questionamentos sinceros a respeito da moral cristã fundante da sociedade brasileira desde o projeto colonizador e permeia, até os dias atuais, nosso jeito de ser e agir enquanto seres sociais. Ao compartilhar com o público esse resultado, minha expectativa é contribuir para uma mudança de postura diante de certos usos e costumes que temos replicado de forma automática. 

Boicotar: punir, constranger pessoa, mediante recusa sistemática de relações sociais; criar embaraços aos negócios ou interesses dela.

Modéstia: qualidade de modesta, desambição, simplicidade. Modesta: moderada nos desejos ou aspirações; despretensiosa; sem vaidade; comedida; simples, que tem poucos haveres.

Eu me boicoto. Eu me boicoto. Eu me boicoto.

Nessa manhã eu decidi que, se quero sair com alguma sanidade mental desse tempo de isolamento social, preciso reconhecer que eu, sistematicamente, crio embaraço aos meus negócios e interesses.

Preciso reconhecer, publicamente, que não sou uma pessoa modesta. Não sou e não quero ser. Eu nem mesmo posso ser! Tenho muita ambição: que meus filhos cresçam, sejam prósperos e solidários em uma sociedade financeira e moralmente falida talvez seja a maior delas.

Também tenho uma aspiração incontrolável: quero mudar o mundo! Quero trabalhar junto com as pessoas que lutam por uma sociedade mais justa para todas. Estou segura que não tem nada de despretensioso nesse desejo.

Sobre vaidade, não sou presunçosa nem fútil, mas gosto de atrair a admiração ou as homenagens de outras pessoas. Também gosto de usar maquiagem e vestir-me com roupas coloridas (e chamativas). Sim, sou meio vaidosa. E não sou comedida. Pelo contrário! Sou exagerada, intensa em tudo o que faço e, muitas vezes, imprudente e bastante exigente. 

Finalmente, não é minha culpa, mas sou parte da classe média brasileira. Tenho casa, carro, computador, máquinas para lavar e secar roupas e louças, para fritar alimentos sem óleo, micro ondas, geladeira, celular... enfim, não tenho poucos haveres. 

Reconheço meu privilégio e denuncio a concentração de renda imoral e a injustiça social que existe em nossa sociedade patriarcal, escravocrata e neoliberal. Escrevo artigos, dou palestras e me esforço para conscientizar quem encontro sobre essa situação porque desejo com muita força que seja diferente. Mas não quero me desfazer de nenhum bem que possuo porque todos são úteis! O quero é que todas as pessoas também possam tê-los, para facilitar suas vidas.

Diante de tudo isso, me pergunto, por que eu insisto em parecer uma pessoa que não sou? EU NÃO SOU MODESTA! E nem quero ser!

Gosto do jeito que sou: alegre, divertida, espirituosa, amiga, companheira, solidária, inteligente, dinâmica, responsável, amorosa, cuidadosa, estudiosa, ambiciosa, meio vaidosa, fogosa, corajosa, bonita, acolhedora... Gente, eu sou muito legal... EU ME AMO!

Por que eu preciso esconder que me acho uma boa pessoa? Por que preciso sempre responder: ah, são seus olhos... ah, é Deus que age... ah, foi Deus quem me deu..., ah, não foi nada..., ah, bondade sua... etc etc etc????

Quer dizer que eu estudo pra caramba, tiro boas notas e foi Deus que ajudou? Trabalho duro, compro um bem e foi Deus quem me deu? Me desdobro para não retribuir grosseria e responder amorosamente e é Deus quem age? Passo a semana pesquisando e estudando a Bíblia, faço uma boa reflexão no domingo e foi Deus quem falou?? E eu? Se eu não tivesse me esforçado tudo teria sido do mesmo jeito, por que Deus faria tudo? Vou dizer algo que pode até ser difícil de acreditar: nunca senti Deus agindo na minha vida enquanto eu estava dormindo na minha cama. Ele só vela o meu sono...

Penso que a moral cristã que se difundiu através dos tempos (e que é muito diferente do ensinamento de Jesus) tem massacrado especialmente mulheres em nossa sociedade. Essa prática de relacionar as chamadas “boas venturas” a Deus e os “maus comportamentos” à condição humana e feminina faz parte da estratégia de nos “domesticar” para facilitar a dominação dos nossos corpos.

Falo por mim. Essa é a minha confissão. Se quiser, faça uma para você.

Essa moral cristã de modéstia que me foi inculcada pela estrutura social que pertenço só tem me trazido uma esquizofrenia da qual preciso me livrar. Preciso parar de querer ser uma pessoa diferente e fazer as pazes comigo. Preciso, desesperadamente, restabelecer as relações sociais com a pessoa amável que sou e parar de criar embaraços a ela. Preciso parar o boicote a mim mesma!

Com a mente perturbada, o tempo todo julgando e condenando a minha personalidade, o meu temperamento, fica muito difícil ter clareza do que desejo, o que torna impossível programar uma rota para alcançá-lo. Daí, quaisquer desejo ou caminho que me apresentarem parecerão razoáveis. Não! Eu vou aprender a apoiar-me. Vou dar crédito a mim. Sei que tenho um discernimento incrível!

Como cristã, leio a Bíblia. Não só leio, mas estudo, pesquiso e procuro compreender as vivências ali descritas, com a expectativa de encontrar orientações para lidar com as situações que se apresentam no meu cotidiano. Com esse exercício, aprendi que o Espírito de Deus (no Antigo Testamento) e o Espírito Santo (o Paráclito, no Novo Testamento) é enviado para inspirar, cuidar, consolar, renovar, livrar. A palavra de Deus não nos diz que o Espírito viria para agir, falar, estudar nem decidir por nós.

Analisando a partir dessa perspectiva, percebo mais facilmente o quanto se distorce a mensagem de amor, cuidado e renovação da esperança que o Criador tem pela sua criação. Ele não a aprisiona, mas a deixa livre para seguir e caminha junto cuidando, consolando e livrando. Em João 15:17 Jesus não pede a Deus para que sejamos tiradas do mundo para algum lugar fora da sociedade na qual estamos inseridas, mas que sejamos livradas do mal. 

Na minha concepção, quanto mais humanizada eu me tornar, comigo mesma e com outras pessoas, mais aprendizado sobre o que é o mal e sua abrangência terei. E a fé cristã me inspira a crer que, nesse processo, poderei sempre contar com o livramento vindo do trino Deus.

Então é isso! Declaro que, a partir de hoje, pretendo seguir assim: amando e respeitando a pessoa maravilhosa que sou, confiante na minha capacidade de discernir o que desejar e buscar o meu desejo, na certeza de que a presença de Deus não é para me usar como fantoche, mas como instrumento de ação a partir da minha personalidade e das minhas habilidades.

Ufa! Que alívio! Sessão de terapia concluída com sucesso por hoje. Agora é seguir a vida e exercitar a mudança. Se eu voltar a fazer parecer que sou modesta, você me fala a verdade?

Daniela Leão Siqueira – 03/06/2020
  

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Pentecostes

O espírito que habita
No meio do moabita
Também se habilita
Nessa geração desdita

No meio da pandemia
Com tanta covardia
Que gera agonia
Ele se anuncia

Mas há antinomia
Nessa teosofia
Que virou a filosofia
E gerou idolatria

Impede a manifestação
Da genuína revelação
Do Senhor da fundação
Com a Sua Criação

Precisamos nos converter
E sua presença perceber
Ele quer nos responder
E a todas nós acolher

Foi Deus quem enviou
E a Ele entregou 
O cuidado do que foi criado
Porque tudo é muito amado

Nossa parte é confiar
E da próxima cuidar
Juntas, com fé desejar
Que logo iremos festejar.

Daniela Leão Siqueira

Certinha

Essa coisa de ser certinha
Essa fala de menininha
Só me trouxe castração
E muita opressão

Quero poder ser
Estar fora da caixinha
Poder fazer revolução
E prover libertação

Não é fácil ser mulher
Ter que ser boa de colher
Fazer muito mais do que der
E topar tudo o que vier

Tomar uma cerveja
Permitir que alguém veja
Dizer que você deseja
Aumenta a peleja

Mas ajuda na caminhada
Que é uma dura jornada
De difícil empreitada
Numa sociedade neoliberada

Suspende o segundo
Liberta o profundo
Alivia do mundo
Eu gozo com o Edmundo 

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Esperança


“Eu é que sei que pensamentos tenho a vosso respeito; pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o fim que desejais.” (Jr. 29:11)


Tenho medo. Tenho angústia. Tenho sono. Um sono que não é de não dormir.. é um sono de não querer acordar. Meus planos fracassaram...

Ultimamente está muito difícil de querer acordar. Tudo lá fora parece estar morto, triste, sem senso, sem rumo. Todos parecemos caminhar para a morte. Como chegamos até aqui, nesse labirinto gigante que não sabemos quantas saídas tem? Será que tem?

 Outro dia ouvi uma mensagem sobre esperança. Espera – intervalo. Esperança – fé (crença) no futuro, confiança, virtude. Confiança – crédito, de boa fama, segurança e bom conceito que inspiram as pessoas de probidade, talento, discrição, esperança firme, familiaridade, atrevimento. Virtude – força moral, disposição firme e habitual para a prática do bem, boa qualidade moral, eficácia, validade, motivo.

Hoje não tenho nada disso. Não tenho esperança, não tenho confiança, não tenho virtude. Nada. Sinto-me seca, triste, fraca, incapaz. Não, não foi de uma hora para outra. E não, não sou a única a me sentir assim. Essa sensação de vazio vem se construindo em nossa sociedade há algum tempo, desde que começaram a nos dizer que estávamos erradas em acreditar que precisamos cuidar umas das outras. “A outra é sua concorrente, você precisa derrotá-la”. Fizeram-nos acreditar.

Não digo que estou totalmente fora dessa lógica, mas luto, sempre que me percebo nela, para fugir. Que tristeza saber que ela se enraizou de tal forma que virou estilo de vida... que angústia não poder reverter essa condição. Eis um intervalo dolorido na minha existência. Estou cansada de correr pelos corredores desse labirinto que me levam a paredes sem portas.

Não creio no futuro a partir desse processo de destruição. Não há como confiar na semelhante se encarada como concorrente a ser derrotada. No final das contas, assassinato é suicídio. Não há virtude nessa prática.

Não há crédito nem boa fama para as vencedoras desse jogo que não inspira segurança, pois não há quem aja com probidade. Não há talento no desconsiderar a vida. Não há bondade em desejar a morte.

Hoje vejo tudo isso. Sinto tudo isso. Vivo tudo isso. Sinto-me engasgada, angustiada, amordaçada, desesperançada.

Outro dia, ouvi uma mensagem sobre esperança. Uma mensagem que falava de ressurreição. De vida, de projetos, de futuro...

Agora me esforço para me lembrar daquelas palavras. Não consigo. Mas preciso. Desesperadamente, preciso. Sem voltar a acreditar na validade da vida, não posso querer acordar. Não do sono, mas do querer dormir. E eu quero dormir. Dormir para passar.

Me dou conta de que não me lembrarei das palavras esperançosas se eu não trocar os meus óculos. Parece estranho, mas é verdade. As lentes que uso agora estão refletindo morte, descrença completa. Pelas lentes do niilismo, a vida é reduzida a nada. Quando foi que eu as coloquei???

Espere um momento... vou trocar. Volto já.

Pronto! Voltei. Achei minhas lentes do amor. Estavam guardadas em uma gaveta desde a última vez em que me dei conta do quanto podemos ser cruéis umas com as outras. Bom que ainda me servem. Ainda enxergo com elas.

Começo a me lembrar, aos poucos, da mensagem. Tinha duas frases muito significativas: “Não chores.” e “Levanta-te!” Reescrevendo-as, um sentimento lá no fundo do meu coração se acende. Sei lá, uma chama pequena que me traz um calor suave e reconfortante. Me faz sentir viva!

Falava também de cuidado de uma com a outra, de conforto em comunidade, de acolhimento e de confiança. Tinha algo de enxugar as lágrimas e, juntas, restabelecer a vida e refazer os planos. Recalcular a rota.

E como é difícil o processo de recalcular a rota para procurar a saída. Primeiro, precisamos perceber que estamos num labirinto, porque ele não se coloca como tal, mas como 'a forma correta de viver'. Não o enxergamos se não questionamos por que vivemos como vivemos. É preciso ter coragem para fazer esse questionamento.

Segundo, é necessário incomodar-se com essa situação. Se a resposta ao nosso questionamento for um conformismo com o estilo de vida que levamos, não há por que querer sair.

Terceiro (mas não último), é preciso ter uma opção a tal forma correta de agir que se nos apresenta. Sim, porque, sem uma rota alternativa, não há como refazer os planos.

Para construir uma rota alternativa (uma estrada nova mesmo), precisamos estabelecer relações de cuidado com a vida, enxugando as lágrimas umas das outras. Não podemos impedi-las de cair, mas, passado um intervalo, elas precisam ser enxutas para que a segurança e a confiança sejam restabelecidas. Não é possível querer acordar se não nos sentimos seguras e confiantes.

Uma vez seguras e confiantes umas nas outras, afidadas, precisamos ser ousadas e nos levantar para anunciar um futuro a ser construído a partir das lentes do amor. Olhemos para a outra como uma companheira de caminhada, valorizando a sua vida, os seus talentos, as suas virtudes e, juntas, construirmos os planos de um futuro fora desse labirinto edificado sobre a morte da irmã e do irmão.

Precisamos trabalhar nesses planos de reconstrução para que toda a diversidade humana e da natureza estejam incluídas neles, tendo a vida como prioridade. Que neles, a morte não seja o plano, mas a consequência natural do ciclo, contemplação da finitude da vida. 

Outro dia, ouvi uma mensagem de esperança. Hoje, relembrando, escrevi uma e venci a angústia. E você? Qual verbo vai conjugar com esperança?

Daniela Leão Siqueira
11/05/2020

terça-feira, 28 de abril de 2020

Vida Nua



Aplicativo
Ambulativo
Dispositivo
Aberrativo.

Ifood
His blood
Uber eats
He I eat.

Ditadura
Esganadura
Assinatura
Escravatura.

E o seu pulso, ainda pulsa.

Daniela Leão Siqueira 18/04/2020

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Rachadura


Isolar
Cuidar
Preservar
Salvar.

Carreata
Sociopata.
Abertura
Que loucura.

Capitalismo
Acumulacionismo.
Neoliberalismo
Sacrificialismo

Humanidade
Vulnerabilidade.
Infecção
Indiscriminação.

Negação
Percepção
Seu irmão
Condenação.


E o seu pulso, ainda pulsa

Daniela Leão Siqueira 20/04/20

sábado, 18 de abril de 2020

Tempos pandêmicos


Pandemia
Agonia
Asfixia
Economia
Apostasia.

Quinina
Cloroquina
Vitamina
Dopamina

Falta.
Revolta
Não dar uma volta.

Anoxia
Apoplexia
Profilaxia
Polidoxia.

E o meu pulso ainda pulsa.

Daniela Leão Siqueira 17/04/2020

Tô coisada



Enjoada

Enclausurada

Entojada

Magoada.



Deprimida

Oprimida

Suprimida

Dolorida.



Enfusa

Confusa

Obtusa

Parafusa.



Paranoica

Mesozoica

Estoica

Perestroika.



E o meu pulso, ainda pulsa.

Daniela Leão Siqueira 18/04/2020