Sinopse: em
tempos de angústia provocada pelo distanciamento social, faz-se necessária uma
auto análise a fim de perceber questões profundas que nossa cultura nos inculcou
de forma imperceptível. Esse texto é resultado de questionamentos sinceros a
respeito da moral cristã fundante da sociedade brasileira desde o projeto colonizador
e permeia, até os dias atuais, nosso jeito de ser e agir enquanto seres
sociais. Ao compartilhar com o público esse resultado, minha expectativa é contribuir
para uma mudança de postura diante de certos usos e costumes que temos
replicado de forma automática.
Boicotar: punir, constranger pessoa,
mediante recusa sistemática de relações sociais; criar embaraços aos negócios
ou interesses dela.
Modéstia: qualidade de modesta,
desambição, simplicidade. Modesta: moderada nos desejos ou
aspirações; despretensiosa; sem vaidade; comedida; simples, que tem poucos
haveres.
Eu me boicoto. Eu me boicoto. Eu me boicoto.
Nessa manhã eu decidi que, se quero sair com alguma sanidade mental desse tempo de isolamento social, preciso reconhecer que eu, sistematicamente, crio embaraço aos meus negócios e interesses.
Preciso reconhecer,
publicamente, que não sou uma pessoa modesta. Não sou e não quero ser. Eu nem
mesmo posso ser! Tenho muita ambição: que meus filhos cresçam, sejam prósperos
e solidários em uma sociedade financeira e moralmente falida talvez seja a
maior delas.
Também tenho uma aspiração
incontrolável: quero mudar o mundo! Quero trabalhar junto com as pessoas que
lutam por uma sociedade mais justa para todas. Estou segura que não tem nada de
despretensioso nesse desejo.
Sobre vaidade, não sou
presunçosa nem fútil, mas gosto de atrair a admiração ou as homenagens de
outras pessoas. Também gosto de usar maquiagem e vestir-me com roupas coloridas
(e chamativas). Sim, sou meio vaidosa. E não sou comedida. Pelo contrário! Sou
exagerada, intensa em tudo o que faço e, muitas vezes, imprudente e bastante
exigente.
Finalmente, não é minha
culpa, mas sou parte da classe média brasileira. Tenho casa, carro, computador,
máquinas para lavar e secar roupas e louças, para fritar alimentos sem óleo,
micro ondas, geladeira, celular... enfim, não tenho poucos haveres.
Reconheço meu privilégio e
denuncio a concentração de renda imoral e a injustiça social que existe em
nossa sociedade patriarcal, escravocrata e neoliberal. Escrevo artigos, dou
palestras e me esforço para conscientizar quem encontro sobre essa situação
porque desejo com muita força que seja diferente. Mas não quero me desfazer de
nenhum bem que possuo porque todos são úteis! O quero é que todas as pessoas
também possam tê-los, para facilitar suas vidas.
Diante de tudo isso, me
pergunto, por que eu insisto em parecer uma pessoa que não sou? EU NÃO SOU
MODESTA! E nem quero ser!
Gosto do jeito que sou:
alegre, divertida, espirituosa, amiga, companheira, solidária, inteligente,
dinâmica, responsável, amorosa, cuidadosa, estudiosa, ambiciosa, meio vaidosa,
fogosa, corajosa, bonita, acolhedora... Gente, eu sou muito legal... EU ME AMO!
Por que eu preciso esconder
que me acho uma boa pessoa? Por que preciso sempre responder: ah, são seus
olhos... ah, é Deus que age... ah, foi Deus quem me deu..., ah, não foi
nada..., ah, bondade sua... etc etc etc????
Quer dizer que eu estudo pra
caramba, tiro boas notas e foi Deus que ajudou? Trabalho duro, compro um bem e
foi Deus quem me deu? Me desdobro para não retribuir grosseria e responder
amorosamente e é Deus quem age? Passo a semana pesquisando e estudando a
Bíblia, faço uma boa reflexão no domingo e foi Deus quem falou?? E eu? Se eu
não tivesse me esforçado tudo teria sido do mesmo jeito, por que Deus faria
tudo? Vou dizer algo que pode até ser difícil de acreditar: nunca senti Deus
agindo na minha vida enquanto eu estava dormindo na minha cama. Ele só vela o
meu sono...
Penso que a moral cristã que
se difundiu através dos tempos (e que é muito diferente do ensinamento de
Jesus) tem massacrado especialmente mulheres em nossa sociedade. Essa prática
de relacionar as chamadas “boas venturas” a Deus e os “maus comportamentos” à
condição humana e feminina faz parte da estratégia de nos “domesticar” para
facilitar a dominação dos nossos corpos.
Falo por mim. Essa é a minha
confissão. Se quiser, faça uma para você.
Essa moral cristã de
modéstia que me foi inculcada pela estrutura social que pertenço só tem me
trazido uma esquizofrenia da qual preciso me livrar. Preciso parar de querer
ser uma pessoa diferente e fazer as pazes comigo. Preciso, desesperadamente,
restabelecer as relações sociais com a pessoa amável que sou e parar de criar
embaraços a ela. Preciso parar o boicote a mim mesma!
Com a mente perturbada, o
tempo todo julgando e condenando a minha personalidade, o meu temperamento,
fica muito difícil ter clareza do que desejo, o que torna impossível programar
uma rota para alcançá-lo. Daí, quaisquer desejo ou caminho que me apresentarem
parecerão razoáveis. Não! Eu vou aprender a apoiar-me. Vou dar crédito a mim. Sei
que tenho um discernimento incrível!
Como cristã, leio a Bíblia.
Não só leio, mas estudo, pesquiso e procuro compreender as vivências ali
descritas, com a expectativa de encontrar orientações para lidar com as
situações que se apresentam no meu cotidiano. Com esse exercício, aprendi que o
Espírito de Deus (no Antigo Testamento) e o Espírito Santo (o Paráclito, no
Novo Testamento) é enviado para inspirar, cuidar, consolar, renovar, livrar. A
palavra de Deus não nos diz que o Espírito viria para agir, falar, estudar nem
decidir por nós.
Analisando a partir dessa
perspectiva, percebo mais facilmente o quanto se distorce a mensagem de amor,
cuidado e renovação da esperança que o Criador tem pela sua criação. Ele não a
aprisiona, mas a deixa livre para seguir e caminha junto cuidando, consolando e
livrando. Em João 15:17 Jesus não pede a Deus para que sejamos tiradas do mundo
para algum lugar fora da sociedade na qual estamos inseridas, mas que sejamos
livradas do mal.
Na minha concepção, quanto mais humanizada eu me tornar, comigo
mesma e com outras pessoas, mais aprendizado sobre o que é o mal e sua abrangência
terei. E a fé cristã me inspira a crer que, nesse processo, poderei sempre
contar com o livramento vindo do trino Deus.
Então é isso! Declaro que, a
partir de hoje, pretendo seguir assim: amando e respeitando a pessoa
maravilhosa que sou, confiante na minha capacidade de discernir o que desejar e
buscar o meu desejo, na certeza de que a presença de Deus não é para me usar
como fantoche, mas como instrumento de ação a partir da minha personalidade e
das minhas habilidades.
Ufa! Que alívio! Sessão de
terapia concluída com sucesso por hoje. Agora é seguir a vida e exercitar a
mudança. Se eu voltar a fazer parecer que sou modesta, você me fala a verdade?
Daniela Leão Siqueira –
03/06/2020