quarta-feira, 12 de julho de 2023

Vou ter que escalar uma montanha

Conversando hoje com meu marido sobre o início do meu tratamento amanhã, fiz a seguinte analogia: estou pronta para iniciar a escalada de uma montanha. Achei interessante ter essa sensação: estar preparada para começar a jornada de subida.

Quem me acompanhou até aqui através dos meus textos, sabe do meu preparo emocional para o tratamento quimioterápico. Foram vários embates para alcançar certa estabilidade.

Iniciei com uma reflexão a cerca de frases que comecei a ouvir. Algumas me fizeram sentir culpa outras, responsabilidade demais. Foi interessante pensar em cada uma e oferecer uma resposta. Nem que seja pra mim mesma.

Depois, veio a briga com o meu cérebro que, quase que por magia, me puxou para um portal de acesso ao passado. Fiquei como que de frente para meus medos, tristezas e arrependimentos. Diante do sofrimento, fui obrigada a desobstruir meu cérebro, limpando essa fossa pela qual também tenho responsabilidade.

Após fazer as pazes com o meu passado, foi a vez do futuro me assombrar. Muitas inseguranças me assustaram e me deixaram sem esperança. Sem esperança de um futuro promissor, tanto para mim, quanto para meu filho e minha filha.

Diante da falta de esperança, eis que a pulsão de vida se impôs e trouxe tudo novamente aos trilhos. Mesmo que sejam trilhos novos, caminhos muito diferentes para mim, a fé colocou minha locomotiva novamente em movimento. Dessa vez, com a caldeira mais fria, com menos chance de explosão e maior aceitação da vida como ela é.

Passado e futuro viabilizados, foi a vez de organizar o presente. Lidar com a nova situação que se apresenta nesse momento, dentro de casa, na vida que se vive no exato instante em que os acontecimentos se fazem realidade. E foi diante de 150 mil pessoas que os Titãs me disseram: não se importe tanto com os problemas pequenos da vida, você pode (e vai) se arrepender um dia. Então, o cotidiano ficou mais leve, menos tenso, mais prazeroso.

Passado, presente e futuro aceitos, foi o tempo de colocar a minha vida em ordem. Minha vida, meu corpo e a forma como me coloco no mundo. Como me enxergo, me entrego, me movimento, faço parte. Foi importante me livrar da condição de altruísta. Decisivo aprender a ser assertiva. Foi essencial aprender que atender minhas necessidades e meus desejos (a minha essência) devem ser prioridade na hora de escolher quais lutas quero e posso travar.

Como é fundamental conhecer-se e gostar de si mesma. Ainda estou aprendendo, mas sinto que dei um passo importante nesse processo. Aceitar quem sou, com minhas potências e fragilidades foi decisivo nesses dias de reflexões e organização das “gavetas emocionais”.

Identificar que o corpo precisa de cuidado não é fácil. Perceber-se em marcha lenta, com o "peso do mundo" nas costas é muito desconfortável. Mas também pode ser importante para preparar-se para um novo tempo, com um novo modo de ser, estar e se relacionar com o mundo.

Daí a importância da fé. Acreditar que, aconteça o que acontecer, não estou sendo punida por alguma coisa errada que fiz nem tenho responsabilidade sobre a doença que me acometeu. Perceber a presença da Criadora da vida (e da minha vida) nos mínimos detalhes, nas mínimas criaturas é fundamental para esperançar. Esperança numa vida mais fortalecida, mais saudável, mais livre. Não somente para mim, mas para todas as pessoas. Perceber e tentar descrever a presença da Ruah nesses dias de limpeza emocional foi emocionante e revigorante.

Por fim, estou diante da montanha. Não tenho escolha: sou obrigada a escalá-la. Como eu já disse, imaginar que o tratamento de quimioterapia para enfrentar os adenocarcinomas que estão se multiplicando pelo meu corpo apresenta-se pra mim, neste momento, como uma montanha foi uma boa analogia.

Sempre tive medo de escaladas. Só em pensar, tinha (e ainda tenho) arrepio. Frio, chuva, sol, calor, sede, fome, suor, cansaço, exaustão. Dores. Muitas dores. Tudo isso junto e misturado. Saber que viverei esses sintomas nos episódios desta série que está por começar, é intimidante. Serie essa que espero, mesmo, que tenha apenas uma temporada. 

Agora, me vejo checando as malas para me apresentar ao guia da jornada. Não tenho escolha. Preciso passar por isso.

A boa notícia é que estou firme. Todos os exercícios dos últimos 30 dias me fortaleceram e me firmaram minhas pernas e pés. Eu vou com a coluna ereta.

Sei que não estarei sozinha. Sou privilegiada e constantemente acompanhada de pessoas que amo e me amam de volta: meu companheiro de vida, minha filha, meu filho e a namorada dele. Minha mãe e meu pai. Minha sobrinha, minha irmã e o namorado dela. Minhas primas. Minha sogra, meu sogro, minha cunhada, meu cunhado e minha co-cunhada. E tem minhas amigas. Olha só quanta gente para estar comigo enquanto escalo! Fora as outras pessoas que encontrarei pelo caminho. Só tenho que agradecer a Ruah por tanta companhia.

Há também os testemunhos. Outras pessoas fizeram o mesmo percurso e chegaram do outro lado. É nisso que focarei nos próximos capítulos que serão escritos, passo a passo, cena a cena.

E há também os relatos da segurança da trilha. Serão várias paradas, com estrutura para cada necessidade que se apresentar, para cada emergência que aparecer pelo caminho. 

Então, é sobre isso. Vamos subir. Escalar, ascender, elevar, galgar, levantar, sublevar. Todos verbos sinônimos de atravessar a montanha. Obrigada pela companhia, seja qual for a distância que você conseguir percorrer comigo.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Ruah – quem é essa pessoa?

 

Recebi um desafio inesperado: responder ao questionamento de quem é a Ruah.

Faço parte de um coletivo feminista, de mulheres cristãs, na maioria evangélicas, que milita desde dentro dos espaços religiosos. Somos um grupo de ativistas e militantes que tenciona e faz enfrentamentos aos discursos e pregações de cunho fundamentalista conservador. Sejam eles proferidos nos púlpitos, em assembleias ou parlamentos.

É desse lugar que estou falando: uma ativista feminista de enfrentamento a uma teologia patriarcal que insiste em manter as mulheres em condição de subalternidade, inferioridade e subordinação. Tudo isso a partir de muitas violências, sejam elas simbólicas, físicas, emocionais, morais, sexuais etc etc etc.

Esclareço uma coisa: não sou teóloga. Meu conhecimento sobre a Ruah é empírico, é pessoal, íntimo, de vivência e (con)vivência. Não tenho conhecimento técnico para argumentar a presença ou até mesmo a existência da Ruah nos textos ou arqueologia bíblicos.

Então, é sobre isso: sobre a minha caminhada pessoal com a Ruah, essa companheira que me entende, me sente, me acompanha, que me gestou e cuida de mim. Em todo o tempo.

No livro de Gênesis, a Ruah estava lá, germinando e gestando a Terra e tudo o que nela há. Nos livros de Salmos, lá está a Ruah descrita como protetora, consoladora, cuidadora, companhia bem presente. Nos livros dos profetas, a presença da Ruah está descrita como aquela que promove transformação social necessária. Em Isaías 61, é a Ruah quem transforma o choro em riso, a tristeza em alegria, a pulsão de morte em vida abundante. No novo testamento, a Ruah é a espírita santa presente em Jesus, de quem emana cura e poder.

Ao longo dos séculos, as tradições patriarcais foram minando o poder da Ruah. Toda a potência ligada ao feminino foi sendo subsumida, apagada e incorporada à figura masculina do deus todo poderoso. O casal divino, tão próprio e inexoravelmente presente no imaginário dos povos antigos, foi sendo apagado e fixado apenas na figura do pai.

Essa é mais uma prática de violência velada a partir das traduções do hebraico: esconder a presença feminina outrora adorada pelos povos originários, agora proibidos de tal adoração.

Então, quem é a Ruah?

A Ruah é a deusa mãe, que um dia desejou germinar a minha vida, com minhas características únicas de personalidade. Gestou-me com um amor jamais alcançado pela humanidade, amamentou-me com uma paciência e perseverança nunca encontradas e percebidas pelos corações humanos. A Ruah conhece e acredita na potência que me concedeu. Caminha ao meu lado com uma companhia inescrutável, desejando que eu exerça a minha potência, a fim de participar da construção de um mundo melhor, mais digno e justo para todas as pessoas.

E mesmo que eu não atinja o meu potencial máximo, a Ruah não desiste de mim, não me deixa pelo caminho. Nunca! Não importa o que eu faça, fale, pense ou sinta: a Ruah me ama, me cuida e jamais desistirá de mim.

Não tenho afinidade com um pai repreensivo e misericordioso. Essas são características violentas de um deus muito próximo ao ser humano incompassível. Não, esse não é o afeto que procuro como divino.

Já a Ruah é Mãe Criadora, cuidadora, apoiadora. Ela é gestante e gestora de vida, de diversidade, de alegria e satisfação. Mesmo que eu não mereça, ela não é misericordiosa, mas bondosa. Seu amor me alcança de forma sublime, seu cuidado, incondicional.

Reconhecer a presença e companhia da Ruah em minha vida é perceber a importância da presença feminina na Criação. É perceber a vida nas pequenas coisas, nos menores detalhes.

Trabalhar lado a lado com a Ruah é reconhecer o valor do afeto feminino no cotidiano, seja no privado da casa ou no público da comuna. É perceber a divindade nas relações mais tênues, mais sutis. Então, trata-se de perceber uma presença que agrega, produz e reproduz vida em abundância a partir do código feminino da existência. É perceber que a mulher tem força de agregação.

Dessa forma, o fundamento feminino na Criação coloca todas nós mulheres, (sejamos cis ou transgênero) no centro da vida, como essenciais. A presença da Ruah nos tira da condição de subalternidade, de submissão, de secundárias.

Caminhar com a Ruah como referência da presença divina dignifica e ressignifica o papel de cada uma de nós no cuidado com a Criação Dela. Nos coloca no centro do cuidado, da luta e da proteção.

Dessa forma, nos tornamos protagonistas no enfrentamento aos discursos fundamentalistas conservadores que violentamente tenta nos afastar para a periferia do debate. Não somos periféricas. Com a Ruah, somos protagonistas. Somos convidadas a agirmos desde o centro, o cerne, o fundamento.

A Ruah nos capacita para esse enfrentamento. Toda a Sua Criação é movimentada para isso: flores, folhas, frutos e animais passam a ser fonte de inspiração e sabedoria para o cuidado. Pessoas passam a ser aliadas nessa jornada. A Ruah transforma concorrência em aliança.

E Jesus é a nova e eterna aliança entre Deus e a Criação. Ele, o Deus que se travestiu de humanidade é a nossa referência de comunhão, amor e cuidado.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Sobre tartarugas e seus cascos

 

Outro dia, quando fui interpelada por uma amiga sobre como eu me sentia, respondi quase sem pensar: de vez em quando, me vejo como uma tartaruga.

E foi sem pensar mesmo, porque acredito que, em consciência plena, não me compararia com tal animalzinho. Confesso: tenho um pouco de asco desta bichinha. Seja ela pequena, média, grande ou gigante.

Não sei exatamente o motivo. Se é porque ela fica se arrastando, lentamente, devagar demais; se é porque é praticamente só um casco duro; se é porque é como é. Só sei de uma coisa: não gosto de ver tartarugas perto de mim. Fico agoniada.

Mas o caso é que me senti como uma. E me expressei como se fosse uma: estou bem. Às vezes, em marcha bem lenta, mas bem.

Fiquei tão incomodada com a associação... acredito que seja porque tenho me sentido meio Marvin (da música dos Titãs), com o peso do mundo em minhas costas. Não necessariamente o peso do mundo, mas com certeza o peso da casa, da família, do trabalho, da saúde, da vida.

Essa coisa de pensar que está saudável e descobrir que não está é algo que traz muito, mas muito desconforto. E a espera pelos resultados dos exames? É inflamatória! Verdade: minhas articulações estão inflamadas. Vou ter que fazer fisioterapia para aliviar as dores.

E o atendimento médico? É incrível como ficamos vulneráveis quando estamos diante de um profissional que tem um poder gigantesco na mão: determinar o nosso tratamento. Meu Deus! Que peso isso! E se essa pessoa que está me tratando como um objeto errar na indicação? Para isso tem a equipe de auditoria, respondeu com muito carinho a enfermeira. Aliviou um pouco o fardo.

Voltando à conversa pelo WhatsApp, após minha frase analógica com a tartaruga, me perguntei em seguida: será que o casco é tão pesado mesmo ou ela tem um ritmo similar ao do bicho preguiça?

Eu não consegui encontrar o peso exato do casco do bichinho, sem contar as, digamos assim, partes moles. Mas, o que encontrei me deixou atônita. Você sabia que uma tartaruga pode suportar até 200 vezes o seu peso? Jesus, é muita resistência.

Então, pelo que me parece, a tartaruga não anda devagar porque seu casco é pesado, mas deve ser esse o seu ritmo normal: lento, bem lento.

Sempre tive pena da tartaruga. Sempre olhei e pensei: coitada, carrega um peso maior do que suporta. Só que não. Ela ainda suportaria 200 vezes mais do que carrega. Isso é extraordinário.

Não que eu passei a acha-la mais atraente. Nada disso! Mas passei a enxerga-la diferente. Trata-se de um animal extraordinariamente forte. Sem falar na sua independência: consegue se proteger sozinha de predadores. É só puxar as patas e a cabeça para dentro da concha.

Então, acho que minha comparação pessoal com uma tartaruga foi positiva: estou em ritmo lento mesmo, fazer o quê?  Mas não precisa ser por causa de um fardo pesado. Pode ser só porque meu corpo precisou adotar outra marcha. Acho que para dar conta de elaborar os acontecimentos que estou chamando de peso. Porque peso, peso, propriamente dito, talvez eu consiga carregar até mais.

Como me respondeu minha amiga com uma acolhida deliciosa: se só conseguimos avançar lentamente, então assim será.

E vamos que vamos, que a jornada do tratamento ainda nem começou.