sexta-feira, 16 de junho de 2023

Briga com o cérebro – parte 2

Se tem uma coisa que desejamos controlar é o futuro. E se tem uma coisa que não podemos controlar, é o futuro.

Depois de ter feito as pazes com o passado, depois de ter “desobstruído” minha memória passada (leia o texto anterior – Você já brigou com o seu cérebro?), meu cérebro iniciou outro filme. Agora, sobre o futuro.

Outra experiência que quero compartilhar: mais uma briga com o meu cérebro.

Pois bem. A situação foi a seguinte. Mais uma vez eu estava perdida em pensamentos que geraram emoções difíceis de lidar. Emoções que me trouxeram angústia. Eu sempre achei que a angústia tem que ser exposta, declarada. Não pode ser guardada porque adoece. A questão é como fazer a declaração.

E lá fui eu contar para meu filho sobre a angústia que eu sentia pelo futuro dele, pelo futuro da relação dele, pelo futuro da vida dele, pelo futuro do futuro do futuro dele. Jesus, é muito futuro envolvido.

Claro, ele chorou e pediu ajuda com o presente. Com 19 anos, quem dá conta de se deparar com tanta incerteza de tanto futuro? Mas ele também entendeu que é necessário prestar atenção na rota que está traçando. Ajudei, imediatamente. Vou ajudar.  Sempre. Enquanto vida me houver.

Mas o caso não é sobre o meu filho. É sobre mim. Pensando na conversa sobre o futuro, conversando com as pessoas que me acompanham na vida, fui confrontada com uma verdade inexorável: preciso cuidar do meu presente, da minha doença, do meu tratamento. Não é o futuro que importa agora.

Às vezes, é preciso falar metaforicamente para conseguir expressar alguma condição porque as palavras podem falhar. Melhor: o conjunto cognitivo do momento não dá conta de descrever o que está se passando internamente.

Pensando em mim como uma locomotiva, tenho rodado num trilho conhecido e circulado por estações esperadas: estudo na adolescência, formação no início da vida adulta, trabalho estável, casamento, filhos, complemento de formação, cuidado com a grande família, acompanhamento da infância, adolescência do filho e da filha e, recentemente, do início da fase adulta do filho, amadurecimento da vida conjugal e tal e tal e tal. Tudo previsto a partir do trilho que peguei no início da vida adulta, há uns 25 anos.

Pesquisando um pouco sobre o andamento dos trens, descobri uma coisa: ao percorrer seu caminho, um trem desencadeia uma quantidade gigantesca de força pelos trilhos, por isso, esses precisam ser robustos o suficiente para suportar e distribuir toda essa carga.

Acontece que agora, diante do diagnóstico de metástases de um tumor, é como se eu tivesse sido forçada a parar numa estação desconhecida e toda a força antes destinada para deslizar automaticamente pelos trilhos até então conhecidos, ficou represada. Meu peito está assim: explodindo de energia represada pela espera do tratamento.

Junto com essa parada, chegou o outono e desceu uma névoa dão densa sobre o meu visor, que não consigo visualizar o novo caminho. Porque, uma coisa eu sei: o caminho vai mudar. Minha locomotiva passará por novos trilhos em breve.

De repente, me peguei tentando destinar essa energia represada para movimentar a locomotiva de outra pessoa, do meu filho. Jesus, isso é demais! Não posso fazer isso! Volta, Daniela. Volta pra vida real.

Olha que doido: se eu não consigo dar conta nem do meu trem, da minha Maria Fumaça (cujo nome tem a ver com esperança) como posso ter a pretensão de rodar a locomotiva de outra pessoa? Não viaja, Dani. Não na direção da vida do seu filho.

Olha cérebro, é preciso aceitar uma coisa: por mais que você queira, não pode controlar o futuro. E, por mais que tente, não é possível prever o que vai acontecer. Sim, a espera é muito angustiante, mas não pode jogar essa angústia nas pessoas que estão a minha volta, que me amam e querem me acompanhar nessa jornada. Eu vou te controlar para que seu ímpeto não desfaça as relações a minha volta. Isso só vai aumentar o meu sofrimento. Não só o meu, mas o sofrimento de todas.

Ontem, conversando com minha amiga sobre locomotivas, eu passei horas descrevendo minha vivência atual como o movimento de um trem. Parece doidera, mas foi um exercício libertador. Quer ver?

A locomotiva não tem só o maquinista. Tem o “co maquinista”, que pode assumir a direção no caso de emergência, tem o conferente de bilhetes que pode colocar quem está irregular pra fora do trem, tem os passageiros que podem fazer a viagem mais agradável, tem o serviço de bordo...

Se falarmos da estrutura, tem o trilho que tem que ser forte, tem as paradas que podem aliviar a carga do trem, tem as pessoas que fazem a manutenção da estrada e da máquina.

E tem a paisagem, o caminho! E que linda pode ser uma viagem de trem, não é? Que elegante um trem correndo certinho pelos trilhos brilhantes, passando por paisagens verdes, por casas à beira do trilho que, vez ou outra, tem crianças dando tchau. É uma delícia viajar de trem! Pode ser revigorante.

É sobre isso! É sobre controlar para que a energia acumulada não exploda a caldeira do trem. É saber controlar o calor do fogo, da angústia que queima, mas que também gera movimento. É ter paciência para a nova viagem, mesmo que por um caminho novo. Não é sobre controlar outro trem em movimento.

Também é sobre permitir que as pessoas que se importam com você participem da viagem, aliviem a carga nas paradas, assumam a condução por você na emergência, cuidem da máquina e da estrada. Não é sobre fazer tudo sozinha.

Você sabia que a via férrea é composta por dormentes (peças colocadas transversalmente entre os trilhos) e lastros (que são as pedras britadas no chão)? Tudo isso funciona em um sistema relativamente elástico, capaz de se deformar (de forma imperceptível) quando o trem passa e, imediatamente, voltar à posição original[1].

Então, também é sobre ter fé. Acreditar no sistema que foi montado até aqui para que tudo funcionasse, para que o trem andasse sobre os trilhos, mesmo nos trilhos novos! É crer que não precisamos carregar o fardo sozinha, que não precisamos controlar tudo. É sobre crer que todas as pessoas são capazes de cumprir seus papéis nesse sistema, por mais simples que seja!

Não quero controlar outras locomotivas. Cada pessoa é responsável pela sua. Posso estar como passageira, como bilheteira ou na manutenção do trilho. Mas não da direção. Essa deve ser uma das grandes belezas da vida: viajar pelo caminho que preparou.

Então, cérebro, é isso! Quero permitir que nessa viagem, por esse novo caminho desconhecido e incerto, outras pessoas estejam comigo, no comando do meu trem, da minha vida. Me ajudando, me sustentando, me fazendo companhia, cuidando de mim e, quem sabe, até curtindo a viagem.

Agora, é hora de esperar a caldeira esfriar um pouco, acalmar a ansiedade e permitir que a Ruah trace uma nova trajetória para que eu possa, junto do quem me ama, percorrer. O importante é o caminho. Jesus é vida e caminho, não é perecimento nem ponto de chegada.

Como disse a minha amiga, não é sobre o pronto, transformado. Mas sobre o sendo feito, o em transformação.

Desfrutemos da viagem. Seja qual for o caminho do trem!

Nenhum comentário:

Postar um comentário