Se tem uma coisa que desejamos controlar é o futuro. E se tem uma coisa que não podemos controlar, é o futuro.
Depois de ter feito as pazes com o passado, depois de ter “desobstruído”
minha memória passada (leia o texto anterior – Você já brigou com o seu
cérebro?), meu cérebro iniciou outro filme. Agora, sobre o futuro.
Outra experiência que quero compartilhar: mais uma briga
com o meu cérebro.
Pois bem. A situação foi a seguinte. Mais uma vez eu estava
perdida em pensamentos que geraram emoções difíceis de lidar. Emoções que me
trouxeram angústia. Eu sempre achei que a angústia tem que ser exposta,
declarada. Não pode ser guardada porque adoece. A questão é como fazer a
declaração.
E lá fui eu contar para meu filho sobre a angústia que eu
sentia pelo futuro dele, pelo futuro da relação dele, pelo futuro da vida dele,
pelo futuro do futuro do futuro dele. Jesus, é muito futuro envolvido.
Claro, ele chorou e pediu ajuda com o presente. Com 19
anos, quem dá conta de se deparar com tanta incerteza de tanto futuro? Mas ele
também entendeu que é necessário prestar atenção na rota que está traçando. Ajudei,
imediatamente. Vou ajudar. Sempre. Enquanto
vida me houver.
Mas o caso não é sobre o meu filho. É sobre mim. Pensando
na conversa sobre o futuro, conversando com as pessoas que me acompanham na
vida, fui confrontada com uma verdade inexorável: preciso cuidar do meu
presente, da minha doença, do meu tratamento. Não é o futuro que importa agora.
Às vezes, é preciso falar metaforicamente para conseguir
expressar alguma condição porque as palavras podem falhar. Melhor: o conjunto
cognitivo do momento não dá conta de descrever o que está se passando
internamente.
Pensando em mim como uma locomotiva, tenho rodado num
trilho conhecido e circulado por estações esperadas: estudo na adolescência, formação
no início da vida adulta, trabalho estável, casamento, filhos, complemento de
formação, cuidado com a grande família, acompanhamento da infância, adolescência
do filho e da filha e, recentemente, do início da fase adulta do filho,
amadurecimento da vida conjugal e tal e tal e tal. Tudo previsto a partir do trilho
que peguei no início da vida adulta, há uns 25 anos.
Pesquisando um pouco sobre o andamento dos trens, descobri
uma coisa: ao percorrer seu caminho, um trem desencadeia uma quantidade
gigantesca de força pelos trilhos, por isso, esses precisam ser robustos o
suficiente para suportar e distribuir toda essa carga.
Acontece que agora, diante do diagnóstico de metástases de
um tumor, é como se eu tivesse sido forçada a parar numa estação desconhecida e
toda a força antes destinada para deslizar automaticamente pelos trilhos até
então conhecidos, ficou represada. Meu peito está assim: explodindo de energia
represada pela espera do tratamento.
Junto com essa parada, chegou o outono e desceu uma névoa
dão densa sobre o meu visor, que não consigo visualizar o novo caminho. Porque,
uma coisa eu sei: o caminho vai mudar. Minha locomotiva passará por novos
trilhos em breve.
De repente, me peguei tentando destinar essa energia represada
para movimentar a locomotiva de outra pessoa, do meu filho. Jesus, isso é
demais! Não posso fazer isso! Volta, Daniela. Volta pra vida real.
Olha que doido: se eu não consigo dar conta nem do meu
trem, da minha Maria Fumaça (cujo nome tem a ver com esperança) como posso ter
a pretensão de rodar a locomotiva de outra pessoa? Não viaja, Dani. Não na direção
da vida do seu filho.
Olha cérebro, é preciso aceitar uma coisa: por mais que você
queira, não pode controlar o futuro. E, por mais que tente, não é possível prever
o que vai acontecer. Sim, a espera é muito angustiante, mas não pode jogar essa
angústia nas pessoas que estão a minha volta, que me amam e querem me
acompanhar nessa jornada. Eu vou te controlar para que seu ímpeto não desfaça
as relações a minha volta. Isso só vai aumentar o meu sofrimento. Não só o meu,
mas o sofrimento de todas.
Ontem, conversando com minha amiga sobre locomotivas, eu
passei horas descrevendo minha vivência atual como o movimento de um trem. Parece
doidera, mas foi um exercício libertador. Quer ver?
A locomotiva não tem só o maquinista. Tem o “co maquinista”,
que pode assumir a direção no caso de emergência, tem o conferente de bilhetes
que pode colocar quem está irregular pra fora do trem, tem os passageiros que
podem fazer a viagem mais agradável, tem o serviço de bordo...
Se falarmos da estrutura, tem o trilho que tem que ser
forte, tem as paradas que podem aliviar a carga do trem, tem as pessoas que fazem
a manutenção da estrada e da máquina.
E tem a paisagem, o caminho! E que linda pode ser uma
viagem de trem, não é? Que elegante um trem correndo certinho pelos trilhos
brilhantes, passando por paisagens verdes, por casas à beira do trilho que, vez
ou outra, tem crianças dando tchau. É uma delícia viajar de trem! Pode ser
revigorante.
É sobre isso! É sobre controlar para que a energia acumulada
não exploda a caldeira do trem. É saber controlar o calor do fogo, da angústia
que queima, mas que também gera movimento. É ter paciência para a nova viagem,
mesmo que por um caminho novo. Não é sobre controlar outro trem em movimento.
Também é sobre permitir que as pessoas que se importam com
você participem da viagem, aliviem a carga nas paradas, assumam a condução por
você na emergência, cuidem da máquina e da estrada. Não é sobre fazer tudo
sozinha.
Você sabia que a via férrea é composta por dormentes (peças
colocadas transversalmente entre os trilhos) e lastros (que são as pedras
britadas no chão)? Tudo isso funciona em um sistema relativamente elástico,
capaz de se deformar (de forma imperceptível) quando o trem passa e, imediatamente,
voltar à posição original[1].
Então, também é sobre ter fé. Acreditar no sistema que foi
montado até aqui para que tudo funcionasse, para que o trem andasse sobre os
trilhos, mesmo nos trilhos novos! É crer que não precisamos carregar o fardo
sozinha, que não precisamos controlar tudo. É sobre crer que todas as pessoas
são capazes de cumprir seus papéis nesse sistema, por mais simples que seja!
Não quero controlar outras locomotivas. Cada pessoa é
responsável pela sua. Posso estar como passageira, como bilheteira ou na manutenção
do trilho. Mas não da direção. Essa deve ser uma das grandes belezas da vida: viajar
pelo caminho que preparou.
Então, cérebro, é isso! Quero permitir que nessa viagem,
por esse novo caminho desconhecido e incerto, outras pessoas estejam comigo, no
comando do meu trem, da minha vida. Me ajudando, me sustentando, me fazendo
companhia, cuidando de mim e, quem sabe, até curtindo a viagem.
Agora, é hora de esperar a caldeira esfriar um pouco, acalmar
a ansiedade e permitir que a Ruah trace uma nova trajetória para que eu possa,
junto do quem me ama, percorrer. O importante é o caminho. Jesus é vida e
caminho, não é perecimento nem ponto de chegada.
Como disse a minha amiga, não é sobre o pronto,
transformado. Mas sobre o sendo feito, o em transformação.
Desfrutemos da viagem. Seja qual for o caminho do trem!
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