quarta-feira, 12 de julho de 2023

Vou ter que escalar uma montanha

Conversando hoje com meu marido sobre o início do meu tratamento amanhã, fiz a seguinte analogia: estou pronta para iniciar a escalada de uma montanha. Achei interessante ter essa sensação: estar preparada para começar a jornada de subida.

Quem me acompanhou até aqui através dos meus textos, sabe do meu preparo emocional para o tratamento quimioterápico. Foram vários embates para alcançar certa estabilidade.

Iniciei com uma reflexão a cerca de frases que comecei a ouvir. Algumas me fizeram sentir culpa outras, responsabilidade demais. Foi interessante pensar em cada uma e oferecer uma resposta. Nem que seja pra mim mesma.

Depois, veio a briga com o meu cérebro que, quase que por magia, me puxou para um portal de acesso ao passado. Fiquei como que de frente para meus medos, tristezas e arrependimentos. Diante do sofrimento, fui obrigada a desobstruir meu cérebro, limpando essa fossa pela qual também tenho responsabilidade.

Após fazer as pazes com o meu passado, foi a vez do futuro me assombrar. Muitas inseguranças me assustaram e me deixaram sem esperança. Sem esperança de um futuro promissor, tanto para mim, quanto para meu filho e minha filha.

Diante da falta de esperança, eis que a pulsão de vida se impôs e trouxe tudo novamente aos trilhos. Mesmo que sejam trilhos novos, caminhos muito diferentes para mim, a fé colocou minha locomotiva novamente em movimento. Dessa vez, com a caldeira mais fria, com menos chance de explosão e maior aceitação da vida como ela é.

Passado e futuro viabilizados, foi a vez de organizar o presente. Lidar com a nova situação que se apresenta nesse momento, dentro de casa, na vida que se vive no exato instante em que os acontecimentos se fazem realidade. E foi diante de 150 mil pessoas que os Titãs me disseram: não se importe tanto com os problemas pequenos da vida, você pode (e vai) se arrepender um dia. Então, o cotidiano ficou mais leve, menos tenso, mais prazeroso.

Passado, presente e futuro aceitos, foi o tempo de colocar a minha vida em ordem. Minha vida, meu corpo e a forma como me coloco no mundo. Como me enxergo, me entrego, me movimento, faço parte. Foi importante me livrar da condição de altruísta. Decisivo aprender a ser assertiva. Foi essencial aprender que atender minhas necessidades e meus desejos (a minha essência) devem ser prioridade na hora de escolher quais lutas quero e posso travar.

Como é fundamental conhecer-se e gostar de si mesma. Ainda estou aprendendo, mas sinto que dei um passo importante nesse processo. Aceitar quem sou, com minhas potências e fragilidades foi decisivo nesses dias de reflexões e organização das “gavetas emocionais”.

Identificar que o corpo precisa de cuidado não é fácil. Perceber-se em marcha lenta, com o "peso do mundo" nas costas é muito desconfortável. Mas também pode ser importante para preparar-se para um novo tempo, com um novo modo de ser, estar e se relacionar com o mundo.

Daí a importância da fé. Acreditar que, aconteça o que acontecer, não estou sendo punida por alguma coisa errada que fiz nem tenho responsabilidade sobre a doença que me acometeu. Perceber a presença da Criadora da vida (e da minha vida) nos mínimos detalhes, nas mínimas criaturas é fundamental para esperançar. Esperança numa vida mais fortalecida, mais saudável, mais livre. Não somente para mim, mas para todas as pessoas. Perceber e tentar descrever a presença da Ruah nesses dias de limpeza emocional foi emocionante e revigorante.

Por fim, estou diante da montanha. Não tenho escolha: sou obrigada a escalá-la. Como eu já disse, imaginar que o tratamento de quimioterapia para enfrentar os adenocarcinomas que estão se multiplicando pelo meu corpo apresenta-se pra mim, neste momento, como uma montanha foi uma boa analogia.

Sempre tive medo de escaladas. Só em pensar, tinha (e ainda tenho) arrepio. Frio, chuva, sol, calor, sede, fome, suor, cansaço, exaustão. Dores. Muitas dores. Tudo isso junto e misturado. Saber que viverei esses sintomas nos episódios desta série que está por começar, é intimidante. Serie essa que espero, mesmo, que tenha apenas uma temporada. 

Agora, me vejo checando as malas para me apresentar ao guia da jornada. Não tenho escolha. Preciso passar por isso.

A boa notícia é que estou firme. Todos os exercícios dos últimos 30 dias me fortaleceram e me firmaram minhas pernas e pés. Eu vou com a coluna ereta.

Sei que não estarei sozinha. Sou privilegiada e constantemente acompanhada de pessoas que amo e me amam de volta: meu companheiro de vida, minha filha, meu filho e a namorada dele. Minha mãe e meu pai. Minha sobrinha, minha irmã e o namorado dela. Minhas primas. Minha sogra, meu sogro, minha cunhada, meu cunhado e minha co-cunhada. E tem minhas amigas. Olha só quanta gente para estar comigo enquanto escalo! Fora as outras pessoas que encontrarei pelo caminho. Só tenho que agradecer a Ruah por tanta companhia.

Há também os testemunhos. Outras pessoas fizeram o mesmo percurso e chegaram do outro lado. É nisso que focarei nos próximos capítulos que serão escritos, passo a passo, cena a cena.

E há também os relatos da segurança da trilha. Serão várias paradas, com estrutura para cada necessidade que se apresentar, para cada emergência que aparecer pelo caminho. 

Então, é sobre isso. Vamos subir. Escalar, ascender, elevar, galgar, levantar, sublevar. Todos verbos sinônimos de atravessar a montanha. Obrigada pela companhia, seja qual for a distância que você conseguir percorrer comigo.

terça-feira, 11 de julho de 2023

Ruah – quem é essa pessoa?

 

Recebi um desafio inesperado: responder ao questionamento de quem é a Ruah.

Faço parte de um coletivo feminista, de mulheres cristãs, na maioria evangélicas, que milita desde dentro dos espaços religiosos. Somos um grupo de ativistas e militantes que tenciona e faz enfrentamentos aos discursos e pregações de cunho fundamentalista conservador. Sejam eles proferidos nos púlpitos, em assembleias ou parlamentos.

É desse lugar que estou falando: uma ativista feminista de enfrentamento a uma teologia patriarcal que insiste em manter as mulheres em condição de subalternidade, inferioridade e subordinação. Tudo isso a partir de muitas violências, sejam elas simbólicas, físicas, emocionais, morais, sexuais etc etc etc.

Esclareço uma coisa: não sou teóloga. Meu conhecimento sobre a Ruah é empírico, é pessoal, íntimo, de vivência e (con)vivência. Não tenho conhecimento técnico para argumentar a presença ou até mesmo a existência da Ruah nos textos ou arqueologia bíblicos.

Então, é sobre isso: sobre a minha caminhada pessoal com a Ruah, essa companheira que me entende, me sente, me acompanha, que me gestou e cuida de mim. Em todo o tempo.

No livro de Gênesis, a Ruah estava lá, germinando e gestando a Terra e tudo o que nela há. Nos livros de Salmos, lá está a Ruah descrita como protetora, consoladora, cuidadora, companhia bem presente. Nos livros dos profetas, a presença da Ruah está descrita como aquela que promove transformação social necessária. Em Isaías 61, é a Ruah quem transforma o choro em riso, a tristeza em alegria, a pulsão de morte em vida abundante. No novo testamento, a Ruah é a espírita santa presente em Jesus, de quem emana cura e poder.

Ao longo dos séculos, as tradições patriarcais foram minando o poder da Ruah. Toda a potência ligada ao feminino foi sendo subsumida, apagada e incorporada à figura masculina do deus todo poderoso. O casal divino, tão próprio e inexoravelmente presente no imaginário dos povos antigos, foi sendo apagado e fixado apenas na figura do pai.

Essa é mais uma prática de violência velada a partir das traduções do hebraico: esconder a presença feminina outrora adorada pelos povos originários, agora proibidos de tal adoração.

Então, quem é a Ruah?

A Ruah é a deusa mãe, que um dia desejou germinar a minha vida, com minhas características únicas de personalidade. Gestou-me com um amor jamais alcançado pela humanidade, amamentou-me com uma paciência e perseverança nunca encontradas e percebidas pelos corações humanos. A Ruah conhece e acredita na potência que me concedeu. Caminha ao meu lado com uma companhia inescrutável, desejando que eu exerça a minha potência, a fim de participar da construção de um mundo melhor, mais digno e justo para todas as pessoas.

E mesmo que eu não atinja o meu potencial máximo, a Ruah não desiste de mim, não me deixa pelo caminho. Nunca! Não importa o que eu faça, fale, pense ou sinta: a Ruah me ama, me cuida e jamais desistirá de mim.

Não tenho afinidade com um pai repreensivo e misericordioso. Essas são características violentas de um deus muito próximo ao ser humano incompassível. Não, esse não é o afeto que procuro como divino.

Já a Ruah é Mãe Criadora, cuidadora, apoiadora. Ela é gestante e gestora de vida, de diversidade, de alegria e satisfação. Mesmo que eu não mereça, ela não é misericordiosa, mas bondosa. Seu amor me alcança de forma sublime, seu cuidado, incondicional.

Reconhecer a presença e companhia da Ruah em minha vida é perceber a importância da presença feminina na Criação. É perceber a vida nas pequenas coisas, nos menores detalhes.

Trabalhar lado a lado com a Ruah é reconhecer o valor do afeto feminino no cotidiano, seja no privado da casa ou no público da comuna. É perceber a divindade nas relações mais tênues, mais sutis. Então, trata-se de perceber uma presença que agrega, produz e reproduz vida em abundância a partir do código feminino da existência. É perceber que a mulher tem força de agregação.

Dessa forma, o fundamento feminino na Criação coloca todas nós mulheres, (sejamos cis ou transgênero) no centro da vida, como essenciais. A presença da Ruah nos tira da condição de subalternidade, de submissão, de secundárias.

Caminhar com a Ruah como referência da presença divina dignifica e ressignifica o papel de cada uma de nós no cuidado com a Criação Dela. Nos coloca no centro do cuidado, da luta e da proteção.

Dessa forma, nos tornamos protagonistas no enfrentamento aos discursos fundamentalistas conservadores que violentamente tenta nos afastar para a periferia do debate. Não somos periféricas. Com a Ruah, somos protagonistas. Somos convidadas a agirmos desde o centro, o cerne, o fundamento.

A Ruah nos capacita para esse enfrentamento. Toda a Sua Criação é movimentada para isso: flores, folhas, frutos e animais passam a ser fonte de inspiração e sabedoria para o cuidado. Pessoas passam a ser aliadas nessa jornada. A Ruah transforma concorrência em aliança.

E Jesus é a nova e eterna aliança entre Deus e a Criação. Ele, o Deus que se travestiu de humanidade é a nossa referência de comunhão, amor e cuidado.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Sobre tartarugas e seus cascos

 

Outro dia, quando fui interpelada por uma amiga sobre como eu me sentia, respondi quase sem pensar: de vez em quando, me vejo como uma tartaruga.

E foi sem pensar mesmo, porque acredito que, em consciência plena, não me compararia com tal animalzinho. Confesso: tenho um pouco de asco desta bichinha. Seja ela pequena, média, grande ou gigante.

Não sei exatamente o motivo. Se é porque ela fica se arrastando, lentamente, devagar demais; se é porque é praticamente só um casco duro; se é porque é como é. Só sei de uma coisa: não gosto de ver tartarugas perto de mim. Fico agoniada.

Mas o caso é que me senti como uma. E me expressei como se fosse uma: estou bem. Às vezes, em marcha bem lenta, mas bem.

Fiquei tão incomodada com a associação... acredito que seja porque tenho me sentido meio Marvin (da música dos Titãs), com o peso do mundo em minhas costas. Não necessariamente o peso do mundo, mas com certeza o peso da casa, da família, do trabalho, da saúde, da vida.

Essa coisa de pensar que está saudável e descobrir que não está é algo que traz muito, mas muito desconforto. E a espera pelos resultados dos exames? É inflamatória! Verdade: minhas articulações estão inflamadas. Vou ter que fazer fisioterapia para aliviar as dores.

E o atendimento médico? É incrível como ficamos vulneráveis quando estamos diante de um profissional que tem um poder gigantesco na mão: determinar o nosso tratamento. Meu Deus! Que peso isso! E se essa pessoa que está me tratando como um objeto errar na indicação? Para isso tem a equipe de auditoria, respondeu com muito carinho a enfermeira. Aliviou um pouco o fardo.

Voltando à conversa pelo WhatsApp, após minha frase analógica com a tartaruga, me perguntei em seguida: será que o casco é tão pesado mesmo ou ela tem um ritmo similar ao do bicho preguiça?

Eu não consegui encontrar o peso exato do casco do bichinho, sem contar as, digamos assim, partes moles. Mas, o que encontrei me deixou atônita. Você sabia que uma tartaruga pode suportar até 200 vezes o seu peso? Jesus, é muita resistência.

Então, pelo que me parece, a tartaruga não anda devagar porque seu casco é pesado, mas deve ser esse o seu ritmo normal: lento, bem lento.

Sempre tive pena da tartaruga. Sempre olhei e pensei: coitada, carrega um peso maior do que suporta. Só que não. Ela ainda suportaria 200 vezes mais do que carrega. Isso é extraordinário.

Não que eu passei a acha-la mais atraente. Nada disso! Mas passei a enxerga-la diferente. Trata-se de um animal extraordinariamente forte. Sem falar na sua independência: consegue se proteger sozinha de predadores. É só puxar as patas e a cabeça para dentro da concha.

Então, acho que minha comparação pessoal com uma tartaruga foi positiva: estou em ritmo lento mesmo, fazer o quê?  Mas não precisa ser por causa de um fardo pesado. Pode ser só porque meu corpo precisou adotar outra marcha. Acho que para dar conta de elaborar os acontecimentos que estou chamando de peso. Porque peso, peso, propriamente dito, talvez eu consiga carregar até mais.

Como me respondeu minha amiga com uma acolhida deliciosa: se só conseguimos avançar lentamente, então assim será.

E vamos que vamos, que a jornada do tratamento ainda nem começou.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Partilha do fichamento de um livro importante: A Síndrome da Boazinha

A ficha caiu mesmo quando, ao reclamar pra minha irmã que uma pessoa tinha sido muito grosseira comigo ela me respondeu, totalmente sem paciência: “Você é exibida! Acha que todo mundo tem que gostar de você. ”

Uma vez, não me lembro quando, nós (minha irmã e eu) combinamos: vamos falar uma para a outra o que ninguém mais tiver coragem de falar. Por causa desse combinado, agradeci a sinceridade. Jesus amado, ninguém até hoje teve coragem de me dizer que sou exibida? O que isso significa?

Confesso: pesquiso coisas esquisitas no Google. Então, entre uma pesquisa e outra, recebi a indicação de um livro: A Síndrome da Boazinha. Comprei na hora. Viva a Estante Virtual.

Quando chegou, fui logo fazer o questionário: deu! Uma pontuação alta. Segundo minha pontuação, tenho um comportamento tóxico comigo mesma. Sou quase nociva pra mim mesma.

De acordo com os questionários, meu problema está no pensamento: são distorcidos. Cultivei durante 45 anos um sistema de crenças que contribuem para sentimentos negativos e baixa autoestima. Meu Deus!!! E eu que sempre me achei boa...

Lembro de uma vez escrever num papel que era altruísta. Escrevi como algo positivo, quase com vergonha de ser tão boa. Acabo de descobrir que altruísmo é péssimo para comigo mesma, porque cria deveres e obrigações que são impossíveis de serem alcançados.

Se você quiser saber mais sobre a nocividade do altruísmo e da compulsão por agradar as outras pessoas, recomendo a leitura do livro. Mas, só se você estiver disposta a lidar com a necessidade de mudança que essa novidade te trará.

Tá certo. Há algum tempo eu tenho me incomodado com essa questão da desaprovação. Sempre que acontece de eu agir pensando que estou fazendo a coisa certa e recebo confronto e desaprovação fico devastada. Da última vez, fiquei doente por quase uma semana.

Enfim... percebi que era necessário mudar. Não quero mais ficar triste porque alguém não gostou do que eu fiz, do jeito que eu olhei ou falei. Dani-se! Pelo amor de Deus! Tenho 45 anos. Não sou mais uma adolescente...

Segundo a pesquisadora do livro, na infância e adolescência é que adotamos esse comportamento de agradar a todo custo. É mais ou menos essa receita: os pais ficaram bravos porque fizemos alguma coisa que não aprovaram? Então não fazemos mais para não desagradar. Sofremos bullying na escola? Então tentamos agradar para pararem com a importunação. E assim por diante.

Mas, como estou reafirmando algumas vezes já, tenho 45 anos. Não posso continuar agindo e reagindo como uma criança com medo de desagradar aos pais, muito menos como uma adolescente que não quer ser motivo de chacota. Preciso agir como uma pessoa adulta que sou! Porque sou! Não sou?

Não.... a verdade é que não.... quando se trata de reação diante de uma atitude para com alguém que amo, uma desaprovação é muito, muito triste, como para uma criança. Sou exibida... quero ser a melhor em tudo: todas as pessoas que me rodeiam têm que me amar e gostar do que faço, do que falo, de como eu olho...

Tá bom. Ok. Tudo certo. Entendi. Bora mudar isso.

Mas geeeeeeeeente. Como é difícil, viu?

Bom, agora, eu quero falar um pouco dos exercícios que a escritora propõe que façamos. Vou colocar alguns aqui, aleatoriamente, porque estou revendo as anotações que fiz.

- É preciso substituir pensamentos agradadores de “sempre” e “nunca” por outros como “na maioria das vezes, às vezes ou raramente.”

Exemplo:

De: As pessoas devem sempre gostar de mim pelo que faço e nunca me reprovarem.

Por: Somente é possível às vezes gostar de mim pelo que eu faço e a reprovação é uma possibilidade, ainda que na minoria das vezes.

É muito importante reconhecer que nosso pensamento está contaminado e distorcido por demandas e deveres estabelecidos erroneamente. Por isso, é necessário corrigir o pensamento para alcançar a recuperação.

- É preciso reconhecer quando estamos aplicando leituras e expectativas de situações a partir do pensamento mágico.

Exemplo:

De: Se eu for boazinha, nada de mau vai me acontecer.

(No meu caso, eu reconheci que tenho pavor do homem do saco. Desde criança sou muito impressionada com a história do homem que sequestra uma criança que não é boazinha para os pais, coloca num saco e sai viajando pelas cidades vizinhas, batendo no saco para ele “cantar” e ganhar dinheiro com o saco encantado. Isso é apavorante pra mim!)

Por: Coisas ruins acontecem com as pessoas o tempo todo. Não importa o quanto se esforce para ser boazinha, coisas ruins acontecem.

(No meu caso, tive um câncer no intestino há 8 meses. Recentemente, descobri uma metástase no pescoço. Ou seja, não importa o quanto eu tente ser boa, agradar a todas as pessoas a minha volta, resolver os problemas de quem está próxima a mim. Sou humana, logo, coisas ruins podem acontecer comigo. Uma, duas, três vezes... quantas forem possíveis durante a minha vida.)

Olha que linda essa constatação na página 64: “O raciocínio falho leva a conclusões deprimentes e indutoras de culpa. ” Não. Eu não mereço que coisas ruins me aconteçam. Elas apenas acontecem!

É muito importante modificar a premissa de que a vida é justa. Ela não é justa ou injusta. A vida é como é. Compreender e aceitar isso ajuda a corrigir o pensamento mágico que resulta em depressão. 

- É preciso aceitar que a agradabilidade não irá nos proteger ou superar tratamentos rudes.

Epa! Peraí! Eu aprendi exatamente o contrário!

Mas, segundo a escritora (e acho mesmo que faz sentido), em uma situação de conflito agressivo, ser agradável é o equivalente psicológico de estar desarmada. Pelo contrário, ser agradável além de não proteger, ainda fortalece a pessoa agressora.

É como se a agradabilidade fosse uma espécie de encorajamento, de recompensa para que a outra pessoa te maltrate, o que sustenta o ciclo de abusos.

Nesse tópico, eu anotei várias frases:

A pessoa de cuja aceitação eu mais preciso SOU EU!!!

Não há problema em não ser agradável!!!!!!!!!!!!!!!!!

Ser agradável a qualquer preço é uma ideia nociva!!

Talvez ainda precise escrever outras tantas para me convencer totalmente e conseguir mudar essa perspectiva, mas já estou gostando de poder pensar assim.

- É preciso mudar a crença derrotista da primazia das outras pessoas.

Olha que medo na página 70: “O mundo da pessoa agradadora é perigoso, cheio de pessoas poderosas que são controladoras, exigentes, rejeitadoras, exploradoras e punitivas, com posição de primazia.”

Meu Deus, me ajuda a aceitar essa realidade: as outras pessoas NÃO devem vir em primeiro lugar!!!

Uma vez o interesse próprio esclarecido, ao contrário do egoísmo, impede que outras pessoas sofram às suas custas. Para isso, é importante ser capaz de cuidar de si mesma – exercitar ouvir a voz interior da sua necessidade.

Olha as belezas dessas frases nas páginas 84 e 85:

Existe uma grande diferença entre ser egoísta e agir em interesse próprio esclarecido.

Nem sempre é melhor dar do que receber. O equilíbrio está em dar E receber.

Suas próprias necessidades, desejos e ideias são tão importantes quanto as de qualquer pessoa. Para você, podem ainda ser mais importantes.

- É preciso compreender que você é mais do que as coisas que faz.

Recuperar o controle da própria vida exige aprender a manter um bom estado de espírito. Este controle deve-se, em parte, a sua nova capacidade de escolher o que fará ou não fará.

Compreender que negar um pedido está relacionado ao estabelecimento de limites é um passo importante para se livrar de sentimentos de culpa e depressão.

E essas constatações? 

Você é mais do que aquilo que pode realizar. – Página 97

O medo de dizer não é ressentimento reprimido. – Página 102

Dizer sim quando quer dizer não é que deve te fazer sentir-se culpada. – Página 102

Com certeza, você é mais rígida com você mesma do que com qualquer outra pessoa. – Página 103

Você deve tratar a si própria da mesma maneira que trata as outras pessoas. – Página 103.

 

Para se livrar da compulsão por agradar é preciso que seja feito um treinamento. No caso de pensamentos distorcidos, é necessário substituir uma ideia falha por um pensamento novo e mais preciso. Precisa sair do reflexo automático de dizer “sim” em direção a um “não” assertivo. Ainda, precisa abandonar uma reação de fuga de conflitos por uma experiência positiva de solução de problemas.

A melhor alternativa a ser uma agradadora compulsiva é ser uma pessoa que faz a escolha intencional de se importar. Uma escolha de quando, como e para quem você doa seu tempo e recursos.

Assim, você terá certeza de que reserva quantidades apropriadas de tempo e energia para suas próprias necessidades que passarão a ocupar um lugar mais elevado em sua escala de prioridades.

Ao final do livro, a doutora Braiker propõe um plano de ação a ser colocado em prática em 21 passos (ou dias) para exercitar a libertação da compulsão. Preciso confessar: não é fácil.

O automático das práticas consolidadas por anos e dadas como certas é muito mais forte do que pensamos. Tenho revisitado minhas anotações, repetido as propostas de novas diretrizes e tentado muito, mas muito mesmo, controlar a ansiedade.

São dias de altos, outros de baixos, mas não desisto. Sei que preciso mudar. Tanto minha mente quanto meu corpo pedem, clamam por isso: mudança! Preciso muito de novos ares, novas propostas, novas prioridades.

Já descobri que novos ares não sopram em outros lugares, mas exatamente onde eu me encontrar. Tudo depende da forma como estou encarando a situação.

E, pra você que também deseja novos ares, deixo aqui meu testemunho: quando escolhemos agradar a nós mesmas, respiramos mais leve. É realmente um novo ar que entra e circula no corpo. Revigora o desejo de estar viva!



[1] Braiker, Harriet B. – A síndrome da boazinha – Rio de Janeiro – Best Seller, 2012 – 3ª. edição.


sábado, 17 de junho de 2023

Devia ter me importado menos. Quando foi que eu me esqueci desse ensinamento?

 

Devia ter me importado menos
Com problemas pequenos
Ter morrido de amor

Epitáfio - Titãs

Quando foi que eu me esqueci desse ensinamento?

 Ontem fui confrontada, no meio de 150 mil pessoas, durante o show Encontro do Titãs com esse ensinamento: preciso me importar menos com problemas pequenos.

Diante de um diagnóstico de linfonodos tumorais (ou qualquer que seja o diagnóstico de câncer), tudo passa a parecer grande demais. Acredito que parte desse transtorno (no sentido de modificação da ordem original) acontece porque há um estigma social sobre o câncer: é anúncio do fim, não tem como escapar.

Sei lá por qual motivo entrei nessa “pira” de que agora tudo ficou grande demais pra mim. É como se os menores problemas e incômodos tivessem um tamanho muito maior do que realmente têm.

De repente a louça suja, as coisas fora de ordem dentro da casa, o banheiro sem limpeza, a dificuldade de entrosamento na família enfim, as questões do dia a dia em geral vão tomando uma importância tão gigantesca que não conseguimos suportar o incômodo.

E isso pode tomar uma proporção tão grande que podemos acreditar que nossas vida e saúde dependem da eliminação desses transtornos. E qual é a primeira resposta que se apresenta como melhor forma de acabar com os confrontos advindos das relações humanas? Eliminar as pessoas humanas com a qual nos relacionamos. Olha que impactante essa lógica! Até dói no coração, né?

Diante desse testemunho de vida com o qual fui confrontada – devia ter me importado menos com problemas pequenos – percebi que é disso que esses incômodos se tratam: problemas pequenos. Diante do amor que as relações me promovem e sustentam, esses conflitos resultantes da convivência são pequenos. Aliás, muito pequenos.

A vida é efêmera, passageira, transitória. Tem curta duração. Meu pai gosta de usar o termo orgânico, próprio do que é vivo, que muda todo o tempo. E é mesmo. Num dia somos crianças, no outro, nos percebemos envelhecidas. Num dia temos vidas infantis para cuidar e no outro, somos nós a sermos cuidadas pelas crianças que ficaram adultas. Num dia estamos saudáveis, voando como um passarinho, no outro, precisamos parar o voo para tratar da saúde. É a vida, mas é bonita e é bonita. Não temos que ter a vergonha de sermos felizes nesse interregno.

Creio piamente que o que estou enxergando agora como gigantesco, maior do que eu, em pouco tempo estarei relatando como coisa pequena. Não somente porque eu vou crescer (no sentido de amadurecer), mas porque vou enxergar os pequenos conflitos como o que realmente são: pequenos diante da imensidão de vida e alegria que há nas relações que são vividas e orientadas por amor.

Então, quero deixar aqui, por escrito, um projeto que pretendo buscar concretizar: 1 - não quero me arrepender por ter me importado muito com as coisas pequenas; 2 - quero aceitar as pessoas como elas são porque cada uma sabe a alegria e a dor que traz no coração.

Não quero deixar pra Dani do futuro um legado de arrependimento por não ter acolhido ou amado alguém quando era possível. Quero que a Dani do futuro tenha orgulho de mim porque hoje, decidi dedicar minhas ações, pensamentos e desejo para que, enquanto eu viver (sabe-se lá quando vou morrer), viver por e de amor. Quero viver escolhendo me relacionar intensamente e amar até o final.

Quero, hoje, escolher aceitar a vida como ela é e está, porque a cada pessoa cabe as alegrias e as tristezas que chegam. E eu sei que o acaso vai me proteger enquanto eu andar distraída amando e sendo amada...

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Briga com o cérebro – parte 2

Se tem uma coisa que desejamos controlar é o futuro. E se tem uma coisa que não podemos controlar, é o futuro.

Depois de ter feito as pazes com o passado, depois de ter “desobstruído” minha memória passada (leia o texto anterior – Você já brigou com o seu cérebro?), meu cérebro iniciou outro filme. Agora, sobre o futuro.

Outra experiência que quero compartilhar: mais uma briga com o meu cérebro.

Pois bem. A situação foi a seguinte. Mais uma vez eu estava perdida em pensamentos que geraram emoções difíceis de lidar. Emoções que me trouxeram angústia. Eu sempre achei que a angústia tem que ser exposta, declarada. Não pode ser guardada porque adoece. A questão é como fazer a declaração.

E lá fui eu contar para meu filho sobre a angústia que eu sentia pelo futuro dele, pelo futuro da relação dele, pelo futuro da vida dele, pelo futuro do futuro do futuro dele. Jesus, é muito futuro envolvido.

Claro, ele chorou e pediu ajuda com o presente. Com 19 anos, quem dá conta de se deparar com tanta incerteza de tanto futuro? Mas ele também entendeu que é necessário prestar atenção na rota que está traçando. Ajudei, imediatamente. Vou ajudar.  Sempre. Enquanto vida me houver.

Mas o caso não é sobre o meu filho. É sobre mim. Pensando na conversa sobre o futuro, conversando com as pessoas que me acompanham na vida, fui confrontada com uma verdade inexorável: preciso cuidar do meu presente, da minha doença, do meu tratamento. Não é o futuro que importa agora.

Às vezes, é preciso falar metaforicamente para conseguir expressar alguma condição porque as palavras podem falhar. Melhor: o conjunto cognitivo do momento não dá conta de descrever o que está se passando internamente.

Pensando em mim como uma locomotiva, tenho rodado num trilho conhecido e circulado por estações esperadas: estudo na adolescência, formação no início da vida adulta, trabalho estável, casamento, filhos, complemento de formação, cuidado com a grande família, acompanhamento da infância, adolescência do filho e da filha e, recentemente, do início da fase adulta do filho, amadurecimento da vida conjugal e tal e tal e tal. Tudo previsto a partir do trilho que peguei no início da vida adulta, há uns 25 anos.

Pesquisando um pouco sobre o andamento dos trens, descobri uma coisa: ao percorrer seu caminho, um trem desencadeia uma quantidade gigantesca de força pelos trilhos, por isso, esses precisam ser robustos o suficiente para suportar e distribuir toda essa carga.

Acontece que agora, diante do diagnóstico de metástases de um tumor, é como se eu tivesse sido forçada a parar numa estação desconhecida e toda a força antes destinada para deslizar automaticamente pelos trilhos até então conhecidos, ficou represada. Meu peito está assim: explodindo de energia represada pela espera do tratamento.

Junto com essa parada, chegou o outono e desceu uma névoa dão densa sobre o meu visor, que não consigo visualizar o novo caminho. Porque, uma coisa eu sei: o caminho vai mudar. Minha locomotiva passará por novos trilhos em breve.

De repente, me peguei tentando destinar essa energia represada para movimentar a locomotiva de outra pessoa, do meu filho. Jesus, isso é demais! Não posso fazer isso! Volta, Daniela. Volta pra vida real.

Olha que doido: se eu não consigo dar conta nem do meu trem, da minha Maria Fumaça (cujo nome tem a ver com esperança) como posso ter a pretensão de rodar a locomotiva de outra pessoa? Não viaja, Dani. Não na direção da vida do seu filho.

Olha cérebro, é preciso aceitar uma coisa: por mais que você queira, não pode controlar o futuro. E, por mais que tente, não é possível prever o que vai acontecer. Sim, a espera é muito angustiante, mas não pode jogar essa angústia nas pessoas que estão a minha volta, que me amam e querem me acompanhar nessa jornada. Eu vou te controlar para que seu ímpeto não desfaça as relações a minha volta. Isso só vai aumentar o meu sofrimento. Não só o meu, mas o sofrimento de todas.

Ontem, conversando com minha amiga sobre locomotivas, eu passei horas descrevendo minha vivência atual como o movimento de um trem. Parece doidera, mas foi um exercício libertador. Quer ver?

A locomotiva não tem só o maquinista. Tem o “co maquinista”, que pode assumir a direção no caso de emergência, tem o conferente de bilhetes que pode colocar quem está irregular pra fora do trem, tem os passageiros que podem fazer a viagem mais agradável, tem o serviço de bordo...

Se falarmos da estrutura, tem o trilho que tem que ser forte, tem as paradas que podem aliviar a carga do trem, tem as pessoas que fazem a manutenção da estrada e da máquina.

E tem a paisagem, o caminho! E que linda pode ser uma viagem de trem, não é? Que elegante um trem correndo certinho pelos trilhos brilhantes, passando por paisagens verdes, por casas à beira do trilho que, vez ou outra, tem crianças dando tchau. É uma delícia viajar de trem! Pode ser revigorante.

É sobre isso! É sobre controlar para que a energia acumulada não exploda a caldeira do trem. É saber controlar o calor do fogo, da angústia que queima, mas que também gera movimento. É ter paciência para a nova viagem, mesmo que por um caminho novo. Não é sobre controlar outro trem em movimento.

Também é sobre permitir que as pessoas que se importam com você participem da viagem, aliviem a carga nas paradas, assumam a condução por você na emergência, cuidem da máquina e da estrada. Não é sobre fazer tudo sozinha.

Você sabia que a via férrea é composta por dormentes (peças colocadas transversalmente entre os trilhos) e lastros (que são as pedras britadas no chão)? Tudo isso funciona em um sistema relativamente elástico, capaz de se deformar (de forma imperceptível) quando o trem passa e, imediatamente, voltar à posição original[1].

Então, também é sobre ter fé. Acreditar no sistema que foi montado até aqui para que tudo funcionasse, para que o trem andasse sobre os trilhos, mesmo nos trilhos novos! É crer que não precisamos carregar o fardo sozinha, que não precisamos controlar tudo. É sobre crer que todas as pessoas são capazes de cumprir seus papéis nesse sistema, por mais simples que seja!

Não quero controlar outras locomotivas. Cada pessoa é responsável pela sua. Posso estar como passageira, como bilheteira ou na manutenção do trilho. Mas não da direção. Essa deve ser uma das grandes belezas da vida: viajar pelo caminho que preparou.

Então, cérebro, é isso! Quero permitir que nessa viagem, por esse novo caminho desconhecido e incerto, outras pessoas estejam comigo, no comando do meu trem, da minha vida. Me ajudando, me sustentando, me fazendo companhia, cuidando de mim e, quem sabe, até curtindo a viagem.

Agora, é hora de esperar a caldeira esfriar um pouco, acalmar a ansiedade e permitir que a Ruah trace uma nova trajetória para que eu possa, junto do quem me ama, percorrer. O importante é o caminho. Jesus é vida e caminho, não é perecimento nem ponto de chegada.

Como disse a minha amiga, não é sobre o pronto, transformado. Mas sobre o sendo feito, o em transformação.

Desfrutemos da viagem. Seja qual for o caminho do trem!

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Você já brigou com o seu cérebro? Que doido, né?

Estou perguntando porque ontem foi a primeira vez que me dei conta real de que eu estava fazendo isso: brigando com o meu cérebro.

Deixa eu contar essa experiência.

Há uns 15 dias descobri que estou com três tumores de adenocarcinoma moderadamente diferenciado no pescoço. Parece mentira, mas é verdade: o câncer que tive no intestino gerou metástase no pescoço. Mais precisamente na região cervical esquerda. Estou olhando para o laudo agora.

Diferentemente da primeira vez que eu não precisei fazer quimioterapia, nem radioterapia porque a cirurgia retirou todo o tumor e não houve comprometimento dos linfonodos ao redor, agora a metástase merece mais atenção: como disse a médica de cabeça e pescoço (que não é oncologista) trata-se de algo sistêmico. Não é episódico. Lá vai eu de volta ao oncologista.

O que significa essa atenção? No momento, eu poderia definir como: esperar. Esperar outros exames, outra consulta, outro especialista, algum tratamento. Esperar, esperar, esperar. Você conhece algo mais difícil do que esperar pra saber o que vai acontecer?

É assim que começa minha briga com meu cérebro: diante da espera dos acontecimentos.

Ontem eu estava indo para uma consulta com a coloproctologista para acompanhar os efeitos da cirurgia para retirada do tumor que me levou 15 centímetros do intestino, na região do reto. O nome científico é sigmoidectomia. Tudo nome bonito e fácil...

No caminho, o trânsito estava pesado. Era hora do rush em SP. Eu estava pensando em quantos apartamentos têm em cada prédio naquele Centro. E quantas pessoas moram em cada apartamento. E quantas histórias têm cada pessoa. Imaginando a quantidade de histórias que cada prédio guarda. Jesus, é um número infinito!

Eis que daí meu cérebro achou que seria uma boa apresentar pra mim as minhas histórias. As boas, divertidas ou de superação? Não. Meu cérebro achou que tinha que passar o filme dos piores momentos da minha vida.

E eu não percebi isso. Fiquei, literalmente, sentada, assistindo o filme. Mas eu não só assistia, participava também. E revivia todas as emoções que aqueles momentos me causaram: angústia, dor, raiva, tristeza, medo, arrependimento...

Se é verdade o que nos propõe o filme Divertidamente, estava acontecendo uma briga entre as emoções para assumirem o controle dos meus pensamentos e tudo estava vindo à tona. Menos a alegria...

De repente, abriu-se um portal que me levou para outra dimensão. Eu estava revivendo, de uma só vez, todas aquelas situações que estavam guardadas (eu sei lá onde!). E não, eu não estava dormindo.

Acho que foi o exercício de empatia com as dores de tantas pessoas, guardadas por tantos prédios pelos quais passei, que me conectou com as minhas próprias dores. Tanto com as sofridas, quanto com as provocadas.

A menina que fez coisas de criança, levou bronca, caiu, se machucou; a adolescente que fez coisas de adolescentes, que sofreu coisas de adolescentes, mas passou com muita dignidade por essa fase chatérrima; a jovem que foi forte quando precisou ser, que combateu o que precisou combater e venceu o que foi possível vencer...

Mas não foram só as Danis que vieram à minha memória. Sei lá como, mas as pessoas envolvidas também apareceram, também estiveram presentes. Pessoas que eu pensei ter esquecido, superado, perdoado. Estavam lá, presentes, refazendo as cenas vividas.

Credo! Pareceu uma fossa aberta, cheia de cocô boiando. Foi essa a imagem que me apareceu quando eu perguntei pra mim mesma o que era aquilo, no início da briga com o meu cérebro.

Deixa eu te perguntar uma coisa: você já viu uma fossa aberta? Eu já. Depois que passa o impacto do nojo, você cai na real de que tudo o que tem ali faz parte da natureza e que você contribuiu para aquela condição. De alguma forma, você fez e é parte daquilo também.

Daí é muito doido, porque talvez você queira tentar identificar o seu cocô. Tenho um stand up muito engraçado sobre "a fossa da casa na praia", mas hoje estou falando de tristeza, de briga e enfrentamento. Hoje é a raiva que está no controle das emoções.

Mas é que a alegria insiste em assumir... Uma disputa típica de Danis. O famoso: quem me conhece, sabe.

Então, eu briguei com o meu cérebro. Claro, depois de ter brigado com o meu marido, que me acompanhava no carro. Como sempre, ele estava ao volante.

Diante da minha mudez externa, meu lindo tentou me contar alguma coisa de alguma época que esteve em algum lugar ali perto, por onde estávamos passando. Acontece que no momento em que ele me chamou para realidade, eu estava fantasmagoricamente num tempo e espaço mental diferente do dele.

Eu estava travando uma disputa com pessoas, dores, angústias e medo entre os 20 e 30 anos de idade. Ainda imatura, muito jovem. Tanta coisa que eu faria diferente agora... E foi essa Dani que deu uma reposta que pareceu tão doida, agressiva, totalmente fora do contexto. Do contexto dele. Meu lindo se calou.

Foi então que comecei a brigar com o meu cérebro. Peraí! O que você está fazendo? Do nada você me vem com essas cenas, essas lembranças de pessoas que eu já nem lembrava mais... o que você está fazendo?

Acredite: eu estava tratando o meu cérebro como uma pessoa externa a mim, como alguém responsável por aquela situação. Eu disse: pare já com isso! Eu não admito que você venha aumentar o meu sofrimento. E agora ainda briguei com a única pessoa que está 24 horas por dia ao meu lado nessa etapa difícil!

Olha... vou te dar uma dica: brigue com o seu cérebro: É LIBERTADOR!

Ah... fica com essa coisa chata de ficar trazendo situações e pessoas já superadas. Ficar revivendo na nossa cabeça cenas traumatizantes, colocando no meu corpo emoções que não quero mais (re)sentir. Pára!!! Pára de ficar me fazendo sofrer!

Ficar me jogando pensamentos como:

“ Ah, você tem câncer. ”

Tenho. Infelizmente tenho. Mas não preciso sofrer só porque tenho um tumor. Tudo bem, no meu caso são três. Mas e daí?

“Ah, mas você nem está se cuidando direito. ”

Não tenho o que fazer no momento. Agora, tenho que esperar os resultados, as consultas, os médicos a vida, sei lá,  para iniciar o tratamento.

“Ah, mas você nem está preocupada. Vai que é grave e você não está ligando. ”

Minha preocupação não vai mudar uma vírgula na minha condição. Zero. Nada!

Então, fica quieto! Pára de tentar piorar as coisas pra mim. Pára com esse negócio de ficar me trazendo tudo o que eu senti no passado. Pára de me conectar com pessoas, dores, mágoas, sofrimentos, angústias, arrependimentos que já não servem pra mais nada... Agora preciso estar limpa, desobstruída para poder lidar com as novas emoções que surgirão a partir das novas situações pelas quais irei passar.

Voltando à história da fossa, o rapaz chamado para solucionar o problema descobriu rapidinho o que aconteceu: foi a raiz de uma árvore do quintal vizinho que estava crescendo em busca de água limpa. E pasmem: quase alcançou o vaso sanitário! Olha a alegria querendo voltar com uma gargalhada...

Ele já tinha visto isso acontecer outras vezes. Então foi fácil: cortou a parte da raiz (do problema) e usou uma máquina de pressão que desobstruiu a passagem dos dejetos.

Se a minha metáfora estiver valendo, acho que usei a máquina na minha mente. Sinto que desobstrui o que estava impedindo a passagem do que considero dejeto: o que não gosto de ver, nem de sentir, mas que, se eu ajudei a fazer, deixa lá, fazendo parte, mas sem sentir nojo, nem medo nem raiva nem nada. Deixa lá só fazendo parte. Como disse minha amiga, deixemos a fossa fossilizar para parar de feder.

Tomara que tenha conseguido cortar a raiz também!

Olhando de fora (como olhei a fossa), não posso me livrar dessa realidade: ajudei a construir minha história. Sim, tem dor, mágoa, sofrimento, angústia, arrependimento. Mas.... a maior parte do caminho é de amor, amizade, riso, conquista, vitória e muita, mas muita alegria. Trazendo de volta as histórias que os prédios guardam, certeza de que também terão infinitas memórias assim.

Cérebro, não se esqueça: HÁ ALEGRIA E FELICIDADE NA VIDA! Apesar de...

Se a vida começa aos 40, sou uma adulta criança. Tenho apenas 5 anos de adultice. Minha história me trouxe até aqui e gosto de quem sou, do que eu fiz com e das conquistas que aconteceram comigo.

Fora isso, é filme de terror que não quero assistir. Não gosto, não me faz bem.

Então, que venham mais brigas com o meu cérebro se ele vier de novo com esse roteiro. Quero poder escolher as cenas dos próximos capítulos...